segunda-feira, 27 de julho de 2009

O camelo preto


Ele chegou com a força redentora. Iria salvar uma vida a três. A vida a dois já não prestava. Só prestava a vida a três, que dependia sobremaneira da vida a dois.
Duas rodas aro 18, 20 marchas, correias dentadas, selim confortável e o guidom, para guiar. Guiar o quê?
Os adesivos do camelo preto os três tiraram juntos, para que ele se transformasse numa bike maneira. Os adesivos foram colados na perna cabeluda do pai. A mãe tratou de arrancá-los com força, talvez, assim, quase, mas eu disse quase, se vingando.
Ela o ama, ela o ama, ela o ama. Ainda o ama. Ela repete seu mantra toda vez que caem migalhas, não mais centelhas, naquela vida. Vida? Sim, vida. Mais um aniversário comemorado a três.
E o camelo preto trazendo frescor àquela família. Os olhos de jabuticaba do filhote estavam doces, expressando o sabor daquele momento. Os três, de novo, juntos, andando de bicicleta. Ela chorou, olhos aguados transbordantes de ilusão mantida.
E, naquele dia, foram para a orla, pedalar. Comemoração em família. Os olhos dela não paravam de desaguar. O motivo agora era o Vento Leste soprando forte no sofrer dela. Mas, para ela, era só o Vento Leste nos olhos abertos corporalmente. O pior cego... Uma água de coco?
Água de coco só para dois, aquela criança com o olhar doce, olhar feliz, olhar de harmonia. As lágrimas dela agora não escorriam. Água ali era só do coco. Doce e gelada, refrescou tudo, refrescou a dor escondida, refrescou as sobras de um peito partilhado, mas refrescou por pouco tempo. Para o pai, cerveja. Cerveja. Ele pediu cerveja.
E ela foi molhar os pés em água salgada, daquele mar que sabia do sal das suas lágrimas. Até que veio, arrebentando os bloqueios do não fazer feio, veio, como uma tormenta, um furacão com nome de mulher, um vomitar de tripas, um estilhaçar de coração, o choro veio, ainda inominado, ainda sem ter razão de ser. As ondas quebravam forte, desenhadas contra o céu esmaecido de entardecer. Nuvens. E ela finalmente viu, nas espumas das ondas quebradas, os pedaços do lar que seu sonho construiu, mas que o panorama vivido não permitia que ficasse inteiro. Seu corpo sacudia, ela conseguiu gritar, a voz ainda baixa, o som do mar por cima do ai abafado. E pôde se deixar assim, a se deixar de ser alguém que, mártir, carregava a imagem da família nas maneiras. Soluços, ais, torrente de lágrimas. Presente de aniversário. Projetados nas nuvens, os cacos daquilo que ela já não suportava mais tentar colar, mosaico de dor. E ficou lá. Dos soluços vieram os vômitos, violentos, visão não mais velada, vilipêndio de uma vida, vício da vidinha, viver venal, vergonha de sua vil ausência de vigor de suportar mais um pouco, vulnerabilidade involuntária. Presente de aniversário.
E ele, o pai do filhote, nem notou seu afastamento, interessado em saber das vendas do quiosque da orla. O filhote ainda na bicicleta, fazendo círculos em torno do nada, na brincadeira pueril de somente andar de bicicleta, com todo o prazer que lhe cabe.
Ela lavou o rosto no mar, na espuma, sabendo que aquele camelo preto não teria força redentora nenhuma. É só deixar o filhote crescer mais. E andou de volta para a orla.

Um comentário:

Guilherme Canedo disse...

Fan, achei lindo esse conto... de uma beleza reflexiva que encanta do início ao fim.

Vou aguardar os outros Camelos!

beijos